Um Hostel em Budapeste. Um dos espaços mais acolhedores e místicos que já conheci (Fotos: Raquel de Castro)
Lá fora, Budapeste desafia-nos. Calcorreamos ruas, pontes, colinas, subterrâneos e, no final do dia, regressamos ao Hostel cobertos de pó, de suor, de fome e de prazeiroso cansaço, e então alcançamos que o deslumbramento continua, cá dentro...
… Por fora não se distingue. Mas franqueado o portão, o que à partida poderá parecer entrópico, depressa acaba por nos levar a descobrir, uma vez e outra, os mais deliciosos pormenores. Em casa fora de casa. O Hostel não só nos acolhe como, em cada objeto, evoca memórias esquecidas. Do geral para o particular, de corpo, mente e coração abertos, deixamo-nos envolver por este espaço em que, a cada recanto, o místico aparece casado com o profano em juras de amor eterno.
Os talheres de prata evocam festas rumorosas. Que dama vaidosa pavoneou colares e leques e em que jogos de sedução? Que palavras frias ou que frases apaixonadas dedilharam estas teclas? Que reflexos nasceram já destes espelhos que se atrevem connosco a cada esquina? Que palavras trocam os amantes, pintados nas paredes, que dão viço às plantas do jardim?
Fazemo-nos à escada de pedra e ferro, demorando a cada degrau. Numa janela, o Rato Mickey parece zelar a meninice que teima em nós. E nos varandins, lençóis e toalhas a cheirar a lavado evocam corpos vivos e renovados. Mas o aroma que vem da cozinha celebra já outros pecados…. Antecipadamente deleitados, abandonamo-nos nas cadeiras do terraço.
Um ou outro hóspede, mais ou menos residente, saúda-nos. Trocamos palavras e sorrisos na linguagem apátrida dos corações. E espreguiçamos o corpo, enquanto lentamente nos confundimos com a Alma do Mundo…
Anoitece. Acima, o céu ruborizado continua a prometer. No velho rádio alguém sussurra ”… Si puedes tu con Dios hablar…”. Na mesa, as pautas amarelecidas pedem que lhes devolvam a voz, enquanto o piano diz à bicicleta: “Se me desses espaço …”.
Nas nossas mãos, a lente, gulosa de tanta Beleza, ganha vontade própria. Agora mais próximo, agora mais longe, não tem sossego. Quer aproveitar o dia que aos poucos se vai recolhendo.
E o Hostel, impossível de ser engolido pelo tempo da memória, perpetua-se na memória do tempo, qual imagem viva e de cores permanentes.